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Mediação e conciliação

Por tudo isso, parece-me mais adequado reconhecer que o modelo de Riskin explica bem os conflitos que têm dimensão emocional mais restrita, que envolvem uma contraposição de adversários que agem estrategicamente e que exigem a intervenção do terceiro para catalisar um acordo, pois a sua função é a resolução do litígio e não na transformação do conflito. Nessa medida, a teoria de Riskin restringir-se-ia basicamente ao que Warat chama de conciliação, conceito que ele diferencia do de mediação, em uma tentativa de construir uma teoria da autocomposição que transcenda os limites do modelo acordista.

B – A mediação centrada no conflito
1. A orientação transformadora

Para Warat, a diferença primordial entre conciliação e mediação está no tipo de conflito a ser enfrentado, sendo que essa distinção tem reflexos diretos no papel a ser desempenhado pelos mediadores e conciliadores. Outros autores essas duas categorias como tipos distintos de mediação e, como fazem Bush, Folger, dividem a mediação emtransformadora (transformative mediation) e resolutiva de problemas(problem solving mediation)[28]. Porém, prefiro a distinção proposta por Warat, tanto por considerá-la mais elegante (as escolha das terminologias é sempre influenciada por nosso senso estético) como por tratar devidamente um conceito já está consolidado na experiência jurídica brasileira: a conciliação. Como a conciliação é ligada normalmente ao trabalho dos juizados especiais e dos juízes, cuja função primordial (devida ou indevidamente) é estimular o acordo, creio que essa distinção conceitual é a mais compatível com o uso normal da palavra.

De acordo com Warat, a mediação relaciona-se a conflitos com uma forte dimensão emocional e que envolvem um agir eticamente comprometido, enquanto a conciliação aborda conflitos com dimensão afetiva anêmica ou inexistente e envolve um agir estratégico-indiferente. Com isso, a função da mediação é de intervir basicamente no aspecto emocional, buscando transformar uma relação conflituosa em uma relação saudável, auxiliando as partes a compreender o conflito de forma mais aprofundada (o que implica compreender os seus próprios desejos e interesses), para que, com isso seja possível converter um comprometimento negativo em um comprometimento positivo ou aumentar o nível de cooperação entre as partes.

Nessa medida, o objetivo da mediação não seria o acordo, mas a transformação do conflito. Essa visão parte do pressuposto de que o conflito não é fruto direto de situações objetivas, mas é fruto do modo como as pessoas interpretam uma situação e reagem a ela (uma mesma situação pode gerar conflito para certas pessoas e não para outras), de modo que é possível alterar o próprio conflito a partir da modificação do modo como as partes envolvidas o percebem. Não se trataria, pois, de uma simples negociação de interesses, mas de uma compreensão dos interesses e sentimentos, com a finalidade de transformar as relações que atingiram um grau de desequilíbrio tal que a autocomposição direta já não era mais um instrumento eficaz. Nas palavras do próprio Warat, a mediação é um trabalho de reconstrução simbólica do conflito, que é capaz de promover uma transformação no conflito por meio de uma (re)interpretação que, conferindo novas significações à relação conflituosa, recrie a possibilidade de uma convivência harmônica das diferenças. [29]

Essa idéia também está presente na concepção de Winslade e Monk, que, extrapolando elementos psicológicos da terapia narrativa (narrative therapy), desenvolveram o que chamaram de mediação narrativa (narrative mediation), uma perspectiva que acentua a dimensão lingüística dos conflitos e nega a pressuposição tradicional de que “what people want (which gets them into conflict) stems from the expression of their inner needs or interests. Rather it starts from the idea that people construct conflict from narrative descriptions of events”[30]. Por isso, as vertentes ligadas à orientação transformadora trabalham com as dimensões simbólicas do conflito, mais que com harmonização dos desejos derivados dessa percepção simbólica da experiência pessoal.

Nesse sentido, a função do mediador é estimular as partes a reconstruir laços emocionais rompidos (ou construir novos enlaces) e, com isso, fazer com que elas possam construir uma relação de convivência harmônica. Para usar a linguagem poética que marca as concepções[31] de Warat, a mediação tem como objetivo reintroduzir o amor no conflito, pois o mediador precisa contribuir para que as partes erotizem o conflito, inscrevendo o amor entre as pulsões destrutivas e, com isso, recolocando o conflito no terreno das pulsões de vida[32].

Essa afirmação evidencia um outro pressuposto fundamental da visão dominante nas perspectivas centradas no conflito, que é a idéia de que as tensões não são um problema a ser erradicado, mas componentes intrínsecos das relações pessoas. As pessoas são diferentes (têm diferentes desejos, interesses, sentimentos, etc.) e as relações humanas são o ambiente em que essas diferenças se produzem como realizações da autonomia das pessoas, gerando uma imensa riqueza em sua diversidade, embora gerando também tensões no entrechoque dessa mesma diversidade. Por conta disso, Warat considera o conflito como uma confrontação construtiva, pois ele entende a vida como um devir conflitivo que tem de ser adequadamente gerenciado[33].

Nesse contexto, o conflito mostra-se como “uma das principais forças positivas na construção das relações sociais e na realização da autonomia individual”, pois “à indiferença de força puramente negativa, autodestrutiva da indiferença, o conflito brinda com um incentivo para a interação e termina erigindo-se numa possibilidade para criar, com o outro [e não contra o outro], a diferença”[34]. Por isso, é normalmente um equívoco falar em resolução de conflitos emocionais, pois o que se pode fazer nesses casos é transformar o conflito, harmonizando e não anulando as tensões, motivo pelo qual Warat chama sua própria concepção de orientação transformadora, contrapondo-a à orientação acordista[35].

2. Mediação e conflito

Dado esse modo produtivo de encarar o conflito, não teria compreendido adequadamente a sua função um mediador que se propusesse a anular as tensões de forma absoluta e definitiva. Esse pseudo-mediador, normalmente de boa vontade, não só estaria em busca de um objetivo inatingível, mas tenderia a obliterar a própria riqueza da relação em que viesse a intervir. O mediador deve ter em mente que toda relação humana é plena de tensões e que nem o conflito pode ser definitivamente resolvido, nem isso é desejável, pois a conflituosidade (mantida, é claro, dentro de certos limites), é requisito e não empecilho a uma convivência saudável. Por isso, a função da mediação é transformar o modo como as partes percebem os seus conflitos, de forma a criar uma situação em que as partes sejam capazes de lidar autonomamente com a conflituosidade inerente a sua relação, no presente e no futuro.

A mediação, portanto, não pode ser reduzida à busca de um acordo. O acordo é uma norma a ser cumprida, ainda que ela provenha de uma decisão consensual das partes conflitantes – ele põe fim a um litígio, mas resolver o litígio não implica transformar o conflito. A mediação busca tornar o acordo desnecessário, fazendo com que o conflito não gere incompatibilidades ou tentando sanar as incompatibilidades anteriormente estabelecidas. Trata-se, pois, de ajudar as partes a desenvolverem formas autônomas para lidar com as tensões inerentes ao seu relacionamento, e não de buscar acordos que dêem fim a uma controvérsia pontual.

Isso aponta outro pressuposto fundamental, que é o fato de que as controvérsias que afloram em uma relação conflituosa normalmente têm raízes bem mais profundas que as que normalmente são percebidas à primeira vista, nem mesmo pelas partes. Como afirma Warat, em todo sentido enunciado existe um dito e um não-dito e conheceremos muito pouco se permanecermos simplesmente no nível do sentido manifestado, pois, “as partes, mais do que freqüentemente se imagina, não conhecem as suas próprias intenções e perdem-se nas formas de seus próprios enunciados; são essas as armadilhas do inconsciente que o mediador deve ajudá-las a trabalhar”[36].

Esse fato aponta para uma ligação muito forte do mediador com a psicologia, pois ele precisa compreender a fundo o conflito e os modos como as pessoas lidam com eles, para possibilitar que atue de maneira eficaz na sua transformação. Como os conflitos com forte dimensão emocional normalmente resultam das tensões vividas em uma relação que se prolonga no tempo e que tem múltiplas dimensões, buscar resolver o efeito sem atacar a causa real do desequilíbrio não seria uma saída razoável.

E o único modo de atacar as causas do conflito é não concentrar-se no próprio conflito (que é apenas efeito), mas no sentimento das pessoas, ajudando-as a olhar para si mesmas e a “sentir seus sentimentos”[37]. Por isso, o papel do mediador não é o de um negociador nem o de um conciliador (ambos estrategistas em busca do acordo), mas o de um “psicoterapeuta de vínculos conflitivos”[38], que busca auxiliar as partes a inscrever o amor no meio conflito.

3. Mediação e conciliação

A partir desse fato, torna-se claro que, no centro da distinção entre conciliação e mediação, está a postura do terceiro imparcial frente à autonomia das partes. O conciliador, tal como o negociador, ocupa tipicamente um lugar de poder, pois, embora ele não tenha autoridade para impor uma decisão às partes[39], as técnicas de que o conciliador se utiliza não são voltadas para fazer com que as partes reconheçam e realizem seus próprios desejos, mas têm como objetivo conduzir as partes a realizarem os objetivos do próprio conciliador, cuja função é a de propiciar um acordo, ainda que contra a vontade das partes. Embora isso possa soar paradoxal, muitas vezes o conciliador está interessado apenas em que as partes realizem um acordo, dado que ele se percebe como um sujeito cujo objetivo é fazer com que se resolva o litígio por meio de uma promessa mutuamente consentida.

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