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Mediação e conciliação

Essa é uma situação especialmente comum nas conciliações institucionais, tal como as que ocorrem dentro do Poder Judiciário, tanto nas sessões de conciliação dos juizados especiais quanto nas audiências de conciliação e julgamento presididas pelos juízes. Nesses casos, o acordo não representa uma forma de valorizar a autonomia da parte, mas representa apenas uma estratégia para evitar que o juiz tenha que julgar o caso, acelerando o andamento do processo judicial. Inserida em um sistema de poder voltado para que autoridade do juiz substitua[40] a autonomia das partes, a conciliação não poderia deixar de estar vinculada ao poder e não à autonomia.

O conciliador judicial cumpre seu papel institucional e burocrático quando o acordo é assinado e, por isso, muitas vezes utiliza todos os meios de pressão disponíveis para fazer com que as partes aceitem algum acordo. E mais grave ainda é a distorção do papel dos juízes que, para “agilizar” o seu próprio serviço, pressionam as partes, afirmando expressamente (ou quase expressamente) a uma das partes que ela deveria aceitar uma certa proposta, pois o acordo lhe seria mais vantajoso que a decisão que ele tomaria se tivesse que resolver o litígio.

O mais trágico é que essa supressão da autonomia é revestida por um discurso de garantia da própria liberdade das partes. A legitimidade do acordo é baseada na idéia de que ele é fruto de uma decisão das pessoas envolvidas, mas, por um lado, muitos acordos resultam da pressão do meio judicial (e da ignorância das partes, que potencializa essa pressão) ou de negociações em que afloram apenas os aspectos mais superficiais do conflito, pois falta ao conciliador a formação (e muitas vezes o interesse) de explorar todas as dimensões do conflito. Ademais, aliar essa exploração das raízes do conflito à conscientização das partes sobre os limites da sua liberdade[41], possivelmente tornaria mais difícil o “acordo”, cuja obtenção é o objetivo do conciliador, mesmo que não seja o objetivo das partes (que não querem o acordo, mas a realização de seus próprios sentimentos de justiça).

Além disso, a cultura individualista propaga um ideal de autodeterminação bastante peculiar, que não deve ser confundido com o que chamamos aqui de autonomia, pois esse ideal tem a ver com o exercício dos interesses de cada pessoa, mesmo que essa pessoa não conheça adequadamente seus próprios sentimentos nem seja capaz de avaliar devidamente as conseqüências de suas ações. Nesse modelo, o exercício de um desejo imaturo e egoísta, carregado de frustrações e carências, fundado em um sentimento superficial e possivelmente passageiro, tende a ser entendido como uma legítima manifestação de autodeterminação da pessoa[42].

Seguindo a orientação acordista, buscar-se-ia resolver o litígio por meio de um acordo, em vez de oferecer à pessoa que vive um conflito interior a possibilidade de resolver suas próprias tensões internas, para que ela possa vir a transformar adequadamente seus conflitos intersubjetivos. Por tudo isso, mesmo que o discurso do conciliador seja estabelecido em função do acordo, o lugar do conciliador é o lugar do poder que se impõe (pois mesmo acordos podem ser impostos) e não o lugar da autonomia que se constrói.

Ademais, mesmo quando atua apenas como um facilitador, o discurso do conciliador é estratégico e não comprometido, servindo a uma tentativa de limitar a autonomia das pessoas por meio de uma promessa formal. Se a promessa pode ser entendida, por um lado, como fruto da autonomia, ela estabelece uma prisão no momento em que é feita. A promessa é uma norma a ser cumprida e, embora a resolução normativa de conflitos seja uma estratégia de limitação da liberdade adequada para lidar com conflitos de pouca densidade emocional, é impossível enquadrar em normas a complexidade de uma relação multidimensional.

Possivelmente todos já tentamos estabelecer regras para regular conflitos de fundo emocional em relações de múltiplo vínculo, e todos já nos demos conta de que a manutenção pura e simples dessas regras, longe de harmonizar a relação, termina por gerar novos conflitos e solapar a poesia. A emoção não exige o mero cumprimento estratégico da regra, mas a sinceridade em um agir comprometido com os sentimentos do outro – e as normas são inúteis para regular os sentimentos[43].

4. Limites da mediação

A esta altura, já deve ter ficado claro que a mediação (tal como definida por Warat, que podemos identificar com a mediação transformadora de Bush e Folger e, em linhas gerais, com a perspectiva narrativa de Winslade e Monk), não é aplicável a imensa gama de conflitos – toda vez que o conflito não envolver uma relação afetiva entre as partes, as tentativas de autocomposição mediada serão descabidas, pois a mediação é um trabalho sobre afetos em conflito, não um acordo exclusivamente patrimonial e sem marcas afetivas”[44]. Como o mediador atua justamente no restabelecimento dos laços emocionais desestabilizados pelo acirramento de um conflito que poderia ter sido mantido em um nível razoável, o sucesso da mediação pressupõe que o conflito tenha uma dimensão afetiva.

Isso, porém, não quer dizer que a mediação apenas se aplica a conflitos familiares, pois há uma dimensão emocional forte em quase toda relação de múltiplo vínculo, pois as pessoas são ligadas, entre si e com a comunidade circundante, por vários interesses e valores inter-relacionados. Tal é o caso não apenas nas relações familiares, mas também nas relações de vizinhança, relações de trabalho, relações de amizade ou companheirismo. De que adianta cobrar uma dívida conflituosa e impossibilitar a relação com um colega de turma com o qual se precisa conviver diariamente por mais quatro anos? Além disso, devem ser levadas em consideração as implicações desses fatos nas relações com as outras pessoas interessadas, pois o modo como tratamos um colega influi no modo como toda a comunidade nos trata[45].

Para resolver situações desse tipo, a aplicação de estratégias puramente normativas (seja a aplicação de regras gerais preestabelecidas ou a criação consensual de novas regras) é muito pouco útil, pois elas provavelmente acirrariam o conflito em vez de resolvê-lo. Para dar conta dessa complexidade de vínculos, a mediação mostra-se o instrumento mais adequado, pois tem a flexibilidade necessária para avaliar as várias implicações do conflito e não impõe às partes nenhuma espécie de obrigação – ao menos de uma obrigação consubstanciada em uma regra formalmente reconhecida, como uma sentença, um laudo arbitral ou um acordo feito frente a um conciliador.

Contudo, essa flexibilidade pressupõe a existência de uma dimensão afetiva no conflito e um interesse das partes em reconstruir a sua relação em novas bases. Com isso, embora seus limites sejam razoavelmente estreitos, a mediação é capaz de tratar de problemas inacessíveis à conciliação e à arbitragem, pois pode e efetivamente trata de direitos indisponíveis e, em vários casos, é uma alternativa mais adequada que a jurisdição. Todavia, é preciso admitir a sua completa inutilidade nas relações de vínculo único ligadas a um agir estrategicamente indiferente, pois, quando há apenas uma oposição de interesses sem dimensão emocional relevante, a intervenção de um conciliador ou de um juiz tende a ser mais adequada que a de um mediador.

Texto originalmente publicado em AZEVEDO, André Gomma de (org.).Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. 1 ed. Brasília: Editora Grupos de Pesquisa, 2003, v. 3, p. 161-201, livro cujo texto integral está disponível em UNB.

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